desligar o aesthetic

Tamyres Matos
3 min readOct 17, 2022

Sempre que reflito o ser humano, falo de substância. Falo de alma, essência, subjetividade. Hoje quero falar sobre o reflexo disso tudo, só que na carne. Quero discutir aparência. Pensar o bonito, o feio, o atraente, o mutável, o inteiro. Sempre defendi que beleza é muito além do reflexo no espelho, do resultado na selfie. Vivo numa luta constante para não mergulhar em superficialidade, apesar da consciência que o encontro momentâneo com ela ajuda a tirar o peso das coisas vez por outra. Mas sempre fui forasteira neste lugar.

É claro que, sendo eu demasiado “humano, ridículo, limitado que só usa 10% de sua cabeça animal”, já me vi submetida às demandas do padrão. Mas este é um universo que nunca me abraçou — e não acho isso, necessariamente, ruim. Ver beleza em mim sempre foi muito além de tentar emular o corte de cabelo da moda ou modular meu corpo. Ter sido criada num universo de afeto na minha família preta e linda ajudou. Ter me tornado alguém cuja busca por conhecimento é insaciável ajudou ainda mais. Amar-se sem frases feitas e discurso vazio é resultado de inteligência emocional — digo isso numa destas frases sem modéstia que me permito esporadicamente.

Não desabar diante das bordoadas da vida é um desafio constante (e há dias em que perdemos mesmo). Ver-se rejeitada(o) — o que invariavelmente acontece em algum momento — é uma viagem de tendência à autocomiseração. Mas emergir deste rolê sem medo de se olhar nos olhos é uma necessidade. Imprescindível ao autoamor, à vida para além da sobrevivência relegada ao papel secundário da eterna busca por aprovação. Há algo de grandioso no humano, que sua carne também traduz. A atual vivência, miserável de cultura, beleza e afeto em grande parte da sociedade, não me faz descartar isso.

Acredito que há beleza nas marcas, nos riscos, nos sulcos, nos traços assimétricos, nos sorrisos alguns tons abaixo do branco, nas barrigas nada negativas, nas manchas. Tenho medo da padronização da vida a partir da carne. Das lentes de contato nos dentes, das harmonizações, do apego aos efeitos do filtro em detrimento de si. Sei que isso, provavelmente, é sinal de que estou ficando velha. Nos meus 35 anos recém completados, tenho em meu corpo: marcas, riscos, sulcos, traços assimétricos, sorriso alguns tons abaixo do branco, barriga nada negativa, manchas. Uns me incomodam às vezes, outros eu gosto e alguns eu chego a amar.

A carne é nossa roupa. Fora alguns privilegiados que podem comprar ilusões, desta roupa geralmente não nos despimos antes da despedida final. É nossa vestimenta até o fim. Acordamos com ela um pouco amassada, chacoalhamos para manter a saúde. Não adianta desejar com muita força trocar de roupa com outra pessoa. O que podemos fazer é cuidar dela enquando aproveitamos o que ela nos oferece. E ela nos oferece tanto… o gosto, a cor, a manifestação das emoções, o caminhar, o sexo, o odor, o alívio, a dor, o prazer. Se eu pudesse fazer um pedido a um gênio que fosse algo dado a outras pessoas, seria essa consciência. O padrão sempre vai existir, de um jeito ou de outro. Mas temos a liberdade de escolher nos rebaixarmos a ele ou tacar o foda-se.

Sei que essa parte remete a título de livro de autoajuda (descobri depois de comprar, nunca conseguir fazer a leitura). Mas o poder do foda-se é imenso. Serve para muitas coisas na vida, a aparência é uma das principais delas. Somos feitos de ausências e presenças, mas só podemos ser inteiros enquanto estamos por aqui. Amar a si mesmo não pode ser um clichê esvaziado pela repetição. Eu acredito na beleza, acredito no poder do desejo. Nunca vou cansar de ansiar por mais vida e por estar sempre aberta às transformações do amor (mesmo no relacionamento comigo mesma). Com meu espírito e, também, com o meu corpo. Minha carne, meu indumento de viagem, meu frágil superpoder.

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Tamyres Matos

Escrevo o que sinto. Sem estratégia, só organicidade. Sempre vestida de profundidade e intensidade. Tem gente que acha que é exagero. E tudo bem.